Bíblia O COLISEUM

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10646670743 - Bradesco - Rodrigo Gaspar de Cerqueira

 Prisão de João

1 O apóstolo parece que só tinha vivido tanto tempo para ver um imenso desastre mais inconsolável do que todos os outros: Jerusalém já não existia. Depois de desolações que enchem de pasmo a história, Vespasiano e Tito tinham armado suas tendas na mesma colina onde o discípulo vira um dia o Mestre chorar sobre a cidade culpada, que matava os profetas. A cidade estava em ruínas, o templo era um montão de cinzas; e aqueles que puderam, fugiram naqueles dias de morte e incêndio, dispersando-se pelo mundo, e João fora informado de que, dos lugares onde vivera junto de Deus e de sua Mãe, nada mais existia.

2 Houve um momento em que pensou que lhe era chegada a vez. Domiciano reinava. Este príncipe, chamado por Tertuliano «metade de Nero portio Neronis», era um homem medroso e feroz. Sua crueldade astuciosa, conforme a designa Suetônio, callida saevitia, alarmou-se com os progressos daquela seita invasora, que ameaçava tornar-se senhora de tudo. Com efeito, no seu reinado a fé transborda em Roma. Não é mais sobre os degraus do trono, que a religião toma assento; ameaça subir até em cima.

3 «Este fato é curioso, incontestável, conta um historiador. A linhagem Flávia, que terminara as guerras civis, e dera doze anos de paz ao mundo antes de ter o desgosto de lhe dar Domiciano, continha justos em seu seio. Tito Flavio Clemente, primo-irmão do Imperador, era cristão; e quando casou-se com sua prima Flávia Domitila, encontrou-a cristã ou converteu-a (4). Uma sobrinha de Domiciano, chamada também Flávia Domitila, recebera o batismo e esperava o martírio. Estes nobres cristãos estiveram algum tempo nas boas graças do imperador. Apesar da humildade cristã de Clemente passar aos olhos dos pagãos por moleza, Domiciano acabava de fazê-lo cônsul ordinário e cônsul com o imperador, o que era honra dobrada. Enfim Domiciano tinha quase adotado seus dois filhos menores, que designava como herdeiros e aos quais dera o nome de Vespasiano e Domiciano»

4 Morresse Domiciano, que estes dois filhos de Clemente, estes discípulos do Evangelho, chegassem a subir ao trono, de que eram herdeiros, e, sessenta anos apenas depois da morte ignominiosa daquele Chrestos como o chamava Suetônio, ainda vivendo seu último apóstolo e amigo, seu culto chegaria sem abalo, regularmente, pelo fato de hereditariedade, ao império do mundo; e talvez fosse São João chamado a vir solenemente pregar e celebrar na presença dos Cesares, sobre o túmulo de São Pedro!

5 O inferno deve ter tremido diante de tal perigo. Domiciano o descobriu; o sangue correu. O cônsul Flávio Clemente, seu parente chegado, teve a cabeça cortada, como convencido, diz Diocassio, «de uma espécie de impiedade particular aos Judeus» (6). Flávia Domitila, sobrinha do imperador foi exilada para longe; os dois príncipes desapareceram. No dizer de Suetônio, todos os que eram ou pareciam Judeus, eram objeto de uma perseguição encarniçada. Sabe-se que por este nome, nos autores de então, quase sempre se entendiam os cristãos (7), e Suetônio mesmo deixa perceber claramente, quando diz:

6 «Além dos da religião judaica, havia outros que, apesar de não fazerem profissão, levavam uma vida idêntica, porém, que negavam serem filhos dessa raça»

7 Esta força crescente do Cristo torna-se para Domiciano um objeto de terror (Eusébio Hist. Eccl. 3, 20). Já uma vez, segundo a narrativa contemporânea de Hegesippo, tinha feito comparecer à sua presença dois pobres cristãos da Judeia, netos do apóstolo São Judas, e últimos descendentes da família de Jesus e de Maria. Interrogados pelo imperador se descendiam de Davi:

8 «Nada de mais verdadeiro, responderam eles. — E que bens possuis? — Temos os dois juntos, por metade, cerca de dois mil dinheiros, consistindo em dinheiro e uma terra de trinta e nove pietros (8) que fazemos render para viver e pagar o imposto»

9 E dizendo isto, estes filhos de Davi mostraram as mãos endurecidas pelo trabalho; Domiciano interrogou-os sobre o reinado do Cristo, seu divino parente. Responderam que seu reinado não era deste mundo e que Jesus só o inauguraria, no dia em que voltasse sobre a terra para julgar os vivos e os mortos. Domiciano riu se e não fez caso (9). Que aparência tinha de verdade que fosse a esta dinastia de colonos miseráveis que se pudesse aplicar a profecia dos livros Sibilinos? A seita tinha outros chefes; e sabendo que, com efeito, o último e o mais querido discípulo de Jesus ainda existia em Éfeso, Domiciano deu ordem para que São João comparecesse à sua presença.

10 A entrada de São João em Roma, no ano 92, nos confins do século apostólico de que ele era a última e augusta relíquia, é certamente um dos fatos mais importantes da história desse tempo. Era o termo daquela grandeza suprema da Igreja romana, já consolidada vinte e oito anos antes, pelo sangue glorioso de São Pedro e São Paulo, do qual João tinha primeiramente partilhado o apostolado e que ia agora, pensava ele, partilhar o túmulo.

11 Naquela época, principalmente, Roma estava cheia de Judeus (10). Introduzida na cidade desde perto de dois séculos, a colônia judaica se tinha espalhado em todas as regiões urbanas, onde se dividia em várias tribos, diferindo entre si pelas opiniões e costumes (11).

12 Mas a opressão tornava então todos os judeus iguais, tanto sob o vergalho dos epigramas de Martial ou de Stacio, como sob o jugo de Domiciano. Ali, de qualquer lado que João olhasse, via logo a imagem da escravidão de sua pátria. No centro da cidade feria-lhe a vista, o arco de triunfo de Tito, debaixo do qual ainda hoje os descendentes dos Judeus recusam passar por patriotismo. Bem perto, via acabar-se o vasto anfiteatro dos Flávios, onde seus antigos irmãos pela Lei, trabalhavam acorrentados, e onde seus irmãos pelo Evangelho deviam em breve descer para atestar e morrer.

13 No entanto, eram estes mesmos homens que deviam consolá-lo da ruína irremediável da pátria judaica, mostrando-lhe a jovem e grande pátria cristã mais próspera do que nunca. Ele mesmo lhes dava o estímulo de uma espécie de sobrevivência de Jesus Cristo, na última e maior testemunha de sua vida. E por ali é fácil julgar com que ardor o abraçaram estes filhos da nova Roma, transformada por ele, e de agora em diante imortal!

14 Tinham à frente o seu bispo Clemente, que diziam de raça senatorial. Tinha seguido Paulo; Pedro deixara-o encarregado de seu rebanho; e ninguém mais apto do que este antigo filósofo, para combater as seitas da filosofia que em pessoa praticara.

15 Estava ainda melhor instruído no Evangelho, e discípulo dos apóstolos, como diz São Irineu, «ouvia sem cessar repercutir aos ouvidos as palavras de seus mestres, assim como tinha sempre seus exemplos diante dos olhos» (12).

16 Em roda dele, como de um centro, irradiavam as maiores almas desse lugar e desse tempo. Segundo a opinião de Orígenes e de Eusébio, era primeiro Hermas, que naqueles mesmos anos acabava de redigir as Visões do Pastor, do qual uma cópia fora enviada a Clemente por ordem do Senhor Jesus; e onde estava escrito:

17 «Eis que está próxima uma grande tribulação. Felizes daqueles que perseverarem e que não renegarem sua própria vida. O Senhor jurou por seu Filho. Aquele que renegar seu Filho, será privado para sempre da vida eterna!» (13)

18 Assim o exército dos santos estava sob as armas, mutilado, mas invencível, quando apareceu seu chefe, o último veterano da tropa apostólica, que vinha animá-lo a novos combates. Eram os combates de direito contra a opressão da liberdade contra a iniquidade.

19 «Estes cristãos, observa uma história recente, velhos, meninos, senhoras e moças, que iam ser levados para os leões, eram as únicas criaturas que resistiam a uma tirania, diante da qual tudo se curvava. Não conspiravam; deixavam ferir estes donos do mundo, que eram também sua vergonha, pela mão dos soldados e dos libertos; ou se conspiravam, não era matando, mas morrendo, non occidendo, sed moriendo, segundo a bela expressão de Santo Hilário de Poitiers. Obedecendo às leis, tanto quanto lhes permitia a consciência, esperavam só o dia em que lhes ordenassem queimar um grão de incenso diante da imagem do imperador: então, sem ódio, sem violência, fosse o imperador bom ou mau, eles recusavam, e a dignidade humana estava salva» (14)

21 Foi sem dúvida, à divindade do imperador que ordenaram a João que sacrificasse. Naquele tempo, Domiciano acabava de deificar-se a si próprio; tinha mandado colocar sua estátua nos santuários mais veneráveis; e hecatombes inteiras eram imoladas nesses altares (15).

22 «Todo e qualquer escritor público, assim como qualquer discurso devia ser encimado por estas palavras: Assim o ordena nosso Senhor e Deus» (16)

23 Diante desse paralelo sacrílego entre um Domiciano e o divino Mestre, fácil é imaginar qual foi a resposta de João. O apóstolo foi condenado; e preparou-se, com o coração radiante, para uma morte que ninguém, mais do que ele, desejara.

24 O lugar tradicional da execução foi a Porta Latina, ou mais exatamente o espaço então livre, mas ocupado posteriormente pela porta aberta por Aurélio, na extremidade oriental de Roma, na Via Ápia, e um pouco abaixo do monumento dos Scipiões. la dar em Albano, onde Domiciano tinha sua vila imperial, e onde fizera sua morada predileta, pedindo a este belo sítio, o repouso da alma, que não é concedido aos maus.

25 Antigos autores dizem que o imperador em pessoa assistiu ao suplício. A morte de um homem era um espetáculo de que raramente Domiciano se privava, conta Suetônio. Depois, ele que achava prazer nas habilidosas prestidigitações de Apolônio de Tiana, quem sabe se não esperava obter deste sacerdote vindo do Oriente, algum prodígio que divertisse os seus enfados de tirano?

26 Conta-se que o juiz começou por cortar os cabelos compridos que João usava à moda de Nazaré. Uma cristã ali estava, que os apanhou, e ainda hoje são guardados como um tesouro e venerados na capelinha de São João in Oleo. A lei romana ordenava que os condenados à morte fossem primeiramente vergastados pelos lictores. Só depois dessa flagelação é que recebiam a pena capital. A que a sentença do juiz reservava a São João consistia em ser mergulhado numa tina com azeite fervendo (17), ou simplesmente água fervendo, como explica São Gregório de Nissa (18).

27 Não seria à este banho que fazia alusão o divino Mestre quando perguntara a João se ele poderia participar do batismo de suas dores? (19).

28 «Também como se exprime Bossuet, ele ali entrou com a mesma prontidão com que nos ardores do estio, nos lançamos num banho para refrescar o corpo»

29 Não morreu. Segundo o belo quadro que descreveu o grande bispo, «a caldeira ardente e fumegante tornou-se subitamente em suave orvalho». Todas as ordens do pretor, toda a cólera dos carrascos foi incapaz de fazer acender de novo a fornalha; e, como a águia, São João saiu do seio das chamas remoçado e renovado: Renovabitur ut aquilce juventus tua (20).

30 Passou-se isto mais ou menos no ano 92 de Jesus Cristo, no décimo primeiro ano do reinado de Domiciano, sendo o imperador cônsul pela décima sexta vez, e no dia 6 de Maio, dia em que a Igreja celebra esse suplício e essa preservação.

31 Foi essa preservação o mais duro martírio para São João. Escutemos ainda Bossuet:

32 «Todo homem a quem Jesus Cristo ama, atrai por tal modo o seu coração que ele nada deseja com tanto ardor como de ver cair o corpo como um velho pardieiro que o separa de Jesus Cristo. Ora, quem mais do que João podia ter este ardor para morrer, ele que tirara esse santo desejo das chagas de seu Mestre! Está, portanto, abrasado com a sede do martírio. Mas, ó sede inútil! Jesus prolonga-lhe a vida para tornar-lhe mais pesada a cruz. É preciso viver até uma velhice decrépita»

33 Mas o peso desta cruz é o peso da glória futura: gloriae pondus, conforme a bela palavra de São Paulo. Ah! Se para ganhar o céu só bastasse um dia, uma hora decisiva e um único esforço, nem que fosse um esforço sublime, todos os santos responderiam que seria comprar a felicidade muito barato. Mas em lugar de morrer num dia de triunfo, condenar-se a penar numa paciência obscura; carregar sem murmúrio o peso dos dias vulgares e do calor empoeirado; beber o cálice, não de um trago, mas lentamente, gota a gota, com todo o seu amargor; e, quando se sente consumir pelo ardor de combater, ficar fiel no posto, a arma no ombro, longe do ruído dos encontros brilhantes; envelhecer, enfim, isto é não somente viver, mas se sobreviver, e durante sessenta anos ficar sobre a cruz que o Senhor plantou para cada um de seus filhos, não na montanha, mas na vulgaridade do dever de estado: é esse o sacrifício que ele prefere. E, se há um martírio que possa ser superior ao de uma bela morte, quem duvida que não seja o martírio de uma tal vida? (21).

34 João foi condenado a viver. Não ficou em Roma. Domiciano não gostava de ver os sábios de tão perto, e aqueles que poupava eram relegados para as fronteiras do império. Foi assim que Epitecto e Dio-Crisóstomo foram forçados a fugir para junto dos bárbaros. João não voltou a Éfeso, levaram-no em exílio para uma das Esporadas, bem em frente à Igreja que ele fundara, como para aumentar o seu suplício pela saudade sempre renovada daquela pátria do coração, vizinha, porém, ausente.